Nós carregamos a ideia de que existe hora da morte. Facilmente ouvimos a expressão ‘era hora dele’. Isso, provavelmente, decorre da ideia de que Deus é autor e dono da vida. Que isso seja verdade, nós sabemos. Mas também tem suas consequências. Dizer que Deus é dono da vida é uma ideia verdadeira, mas não pode contradizer outras verdades acerca de Deus e da vida, que são igualmente verdadeiras. Junto dessa verdade está também a noção de que Deus nos cria por amor, nos dá liberdade total e a tarefa de construir a vida. Dizer que é dono da vida pode gerar a consequência de que ele determina tudo. Ele dá a vida e tira a vida. Essa é a conclusão natural da ideia de que Deus é dono. Se é dono ele manda, faz o que quer, determina com sua vontade a ordem das coisas, marca e define a hora de nossa morte. Isso passa a ser uma ideia evidente. Porém, embora pareça simpática, não é verdadeira. Isso choca com a ideia de liberdade. Deus nos criou livres. Se respeita a nossa liberdade em todo o processo da nossa vida, porque nos tiraria a liberdade marcando a hora da morte? Ele é autor da criação, autor da vida, mas nos criou livres.
A liberdade nos dá condições de construirmos a nossa vida. Nós somos responsáveis pela nossa construção. Podemos cuidar ou não da nossa vida. Podemos ter vida longa ou não, conforme o nosso cuidado, a nossa genética e tantos outros fatores que não podemos controlar. A parte que sai do nosso controle está entregue à natureza e às circunstâncias. Posso dizer: ‘aquela pessoa se cuidava muito e morreu cedo’. Ou ‘aquele não se cuida e está ai vivo e forte’. São exatamente as circunstâncias múltiplas que fogem ao nosso controle que tem seu peso em muitos casos. Porque estão fora do nosso controle também não significa que Deus esteja controlando. Elas fazem parte da própria natureza das coisas. O que interessa é aquilo que podemos controlar e assumir como responsabilidade nossa. A vida consciente e responsável exige cuidado em todas as dimensões. Podemos cuidar do corpo, da mente e do espírito. Cada uma dessas dimensões traz suas exigências. Para cuidar do corpo precisa boa alimentação, disciplina e hábitos saudáveis. Práticas e cuidado também exigem a mente e espírito. Se não fizer nada, pouco crescerei nessas áreas.
Isso mostra que podemos controlar uma parte da vida através do nosso jeito de viver. Podemos prolongar e muito a vida. Mas quando falamos de vida estamos sempre falando de algo frágil. Não há garantia definitiva em nada. Não dá pra dizer: ‘viva dessa forma e viverás muitos anos’. Da pra dizer como motivação para a pessoa assumir um estilo de vida saudável, mas isso não garante que de fato viverá muitos anos. Tem muitas coisas que fogem à regra e ao controle.
Diante da vida frágil está sempre o ladrão da morte. Quando Jesus fala para estarmos vigilantes e despertos porque não sabemos a hora em que o ladrão vem é isso que ele quer dizer. Quem não vive uma vida consciente e com sabor pode morrer sem estar consciente. Quem vive desperto, com amor e sabor também pode morrer, mas se acontecer, partirá feliz e não revoltado com a vida e com o mundo. Saber que podemos morrer é motivo para vivermos com intensidade todos os dias. O que importa mesmo é a qualidade dos nossos dias. Isso depende essencialmente do nosso jeito de viver. O ladrão da vida está na frente de todos, independente de como vivemos. Claro, queremos afastar com o máximo de nossas forças esse ladrão. Isso mostra que o ladrão da vida é a própria morte e não Deus, que de maneira errada continuamos a dizer que nos marca a hora da morte.